Sara Levy | C9 | URS Corp | Barcelona, Espanha
Eletrões de valência
Estávamos lá fora, entre torres da universidade que dividiam geometricamente o chão em sombras quadradas. Pausas para cigarro, e conversas sobre Alan Sokal e o clube dos céticos, e bem feito para os pós-modernistas mais a conversa deles de que tudo é relativo. Tudo o que ele me contava adicionava ao fascínio. Um ano no Brasil, ou nove meses no Brasil e mais dois a viajar pela América do Sul no fim do programa. Durante os trabalhos de grupo, T bebia chá de erva mate por uma estranha palhinha metálica. Em casa dele, havia caixas de cartão ainda por arrumar, encomendas que ele se tinha enviado a si próprio desde Buenos Aires ou Punta Arenas, com livros que ia comprando no caminho ou roupa que já não ia precisar. Eu apagava o cigarro na poça de água esverdeada a secar aos pés do tubo de queda. Anda ver, tem a forma da América do Sul.
Antes de conhecer T, não me tinha ocorrido que sair de Portugal era uma possibilidade. Tinha acabado o curso e começado a trabalhar a recibos verdes para um ministério tão cheio de boas intenções como de más. Pelo menos o edifício era bonito, histórico, pintado do mesmo amarelo pálido que os edifícios da universidade, antiga sede de jornal que tinha dado o nome à rua. Mas o governo era uma árvore em queda e os recibos tinham secado e eu estava de volta à universidade. Concorre, disse-me ele.
Na noite em que anunciaram os destinos, alguém me perguntou para onde é que eu não queria ir. Toda a gente parecia saber os desejos e ansiedades de toda a gente. Durante o estágio no hotel, em vez de me ter dedicado a conhecer os meus colegas e a gozar da camaradagem que se ia criando, dediquei-me a fugir do conforto das quatro estrelas para me ir meter na cama de uma relação tóxica na outra ponta da Estrada do Alvito. My loss.
Perguntei-me se haveria algum país demasiado exótico, demasiado longínquo, algum topónimo que me fizesse, de repente, arrepender-me desta brincadeira parva em que me tinha metido. Quando anunciaram que o meu destino era Espanha percebi que não tinha considerado o problema oposto, o de a experiência ficar aquém da transcendência, do lado de cá do fio da navalha. Ainda não sabia que estava a fugir, e que fugir é por definição transcender. Perguntei, de forma irritante, Madrid ou Barcelona, Madrid ou Barcelona, como se disso dependesse alguma coisa. A distância é relativa, a distância é absoluta. Madrid é à distância de um impulso.
Quando cheguei a Barcelona nevava, atipicamente. Nas primeiras noites fiquei em casa de uma amiga de um amigo, talvez a primeira de muitas vezes em que pedi asilo a essa mágica rede de sofás-cama, essa teia delicada que nada nos pede senão que o mundo seja assim – aberto, tolerante, recíproco, mesmo que não seja necessariamente na mesma direção, disposto a receber e curioso por encontrar.
Confesso que, antes de ir, tinha dúvidas que a amizade a sério pudesse existir na ausência de fluência perfeita, quando lutamos ainda para nos exprimir. Ridículo, em retrospetiva. Não lutamos sempre por nos exprimir?
Um bocadinho canhota (nunca soube bem distinguir a direita da esquerda), aluguei um quarto no Eixample direito. O primeiro fim de semana nesse apartamento, sem ninguém com quem sair à noite e cheia de dores musculares, senti-me miserável. Pensei que era do colchão, então fui para o sofá da sala e acabei por adormecer. Quando o dono da casa acordou na manhã seguinte, soltou um ‘Déu n'hi do’ exasperado.
Na segunda semana, um email da R a convidar-nos para jantar, a nós, os outros Cs em Barcelona. A mim não me tinha ocorrido contactá-los. Nas aulas de catalão da generalitat, uma miúda com uma camisola às riscas vermelha e preta igual à que o Cobain usava veio falar comigo. Depois da aula fomos sair, com o namorado espanhol que eu pensei que era checo, e o amigo galego, e o irmão francês. Não houve mais nenhum fim de semana solitário, mesmo os que eventualmente terei passado sozinha. Barcelona é uma festa, Barcelona não se acaba nunca. Nenhuma literatura pode explicar o que é ter vinte e tal anos numa cidade europeia.
Não voltei a viver em Portugal. De Barcelona fui para Atenas, de Atenas para a Holanda, da Holanda para os Estados Unidos, dos Estados Unidos para França, e de França de volta aos Estados Unidos. Nalgum ponto do caminho, a fuga transformou-se simplesmente em caminho. T e eu temos duas filhas. Vivemos entre três países, as miúdas falam quatro línguas. O centro geodésico da nossa vida cai algures no meio do Atlântico. Ainda hoje, no fundo, penso que vou voltar. Não tenho intenção de voltar, mas mesmo ao fim de 20 anos, o cérebro insiste que viver fora é um estado temporário, como um eletrão excitado, longe do núcleo.
Às vezes tento imaginar o que estaria a fazer se tivesse voltado ou nunca tivesse saído. Destes dois cenários, nunca ter saído parece-me de longe o mais triste. Por ser tão fácil de imaginar. No início deste ano, uma universidade americana ofereceu-me uma bolsa para estudar e ensinar escrita criativa durante os próximos 3 anos. A mim, com esta idade vetusta e sem ser nativa em inglês. Imagino-me a segredar isso aos ouvidos da miúda a caminho da rua do século. Ela velha, e eu
nova, apesar das aparências.
Nos próximos três anos, vão possivelmente ensinar-me a não levar as metáforas demasiado longe. Mas aqui não resisto. Os eletrões de valência são os que formam as ligações aos outros átomos. Mas precisam de energia. O contacto é esse quantum exato de luz, fotão, energia de excitação que torna tudo possível.
Eletrões de valência
Estávamos lá fora, entre torres da universidade que dividiam geometricamente o chão em sombras quadradas. Pausas para cigarro, e conversas sobre Alan Sokal e o clube dos céticos, e bem feito para os pós-modernistas mais a conversa deles de que tudo é relativo. Tudo o que ele me contava adicionava ao fascínio. Um ano no Brasil, ou nove meses no Brasil e mais dois a viajar pela América do Sul no fim do programa. Durante os trabalhos de grupo, T bebia chá de erva mate por uma estranha palhinha metálica. Em casa dele, havia caixas de cartão ainda por arrumar, encomendas que ele se tinha enviado a si próprio desde Buenos Aires ou Punta Arenas, com livros que ia comprando no caminho ou roupa que já não ia precisar. Eu apagava o cigarro na poça de água esverdeada a secar aos pés do tubo de queda. Anda ver, tem a forma da América do Sul.
Antes de conhecer T, não me tinha ocorrido que sair de Portugal era uma possibilidade. Tinha acabado o curso e começado a trabalhar a recibos verdes para um ministério tão cheio de boas intenções como de más. Pelo menos o edifício era bonito, histórico, pintado do mesmo amarelo pálido que os edifícios da universidade, antiga sede de jornal que tinha dado o nome à rua. Mas o governo era uma árvore em queda e os recibos tinham secado e eu estava de volta à universidade. Concorre, disse-me ele.
Na noite em que anunciaram os destinos, alguém me perguntou para onde é que eu não queria ir. Toda a gente parecia saber os desejos e ansiedades de toda a gente. Durante o estágio no hotel, em vez de me ter dedicado a conhecer os meus colegas e a gozar da camaradagem que se ia criando, dediquei-me a fugir do conforto das quatro estrelas para me ir meter na cama de uma relação tóxica na outra ponta da Estrada do Alvito. My loss.
Perguntei-me se haveria algum país demasiado exótico, demasiado longínquo, algum topónimo que me fizesse, de repente, arrepender-me desta brincadeira parva em que me tinha metido. Quando anunciaram que o meu destino era Espanha percebi que não tinha considerado o problema oposto, o de a experiência ficar aquém da transcendência, do lado de cá do fio da navalha. Ainda não sabia que estava a fugir, e que fugir é por definição transcender. Perguntei, de forma irritante, Madrid ou Barcelona, Madrid ou Barcelona, como se disso dependesse alguma coisa. A distância é relativa, a distância é absoluta. Madrid é à distância de um impulso.
Quando cheguei a Barcelona nevava, atipicamente. Nas primeiras noites fiquei em casa de uma amiga de um amigo, talvez a primeira de muitas vezes em que pedi asilo a essa mágica rede de sofás-cama, essa teia delicada que nada nos pede senão que o mundo seja assim – aberto, tolerante, recíproco, mesmo que não seja necessariamente na mesma direção, disposto a receber e curioso por encontrar.
Confesso que, antes de ir, tinha dúvidas que a amizade a sério pudesse existir na ausência de fluência perfeita, quando lutamos ainda para nos exprimir. Ridículo, em retrospetiva. Não lutamos sempre por nos exprimir?
Um bocadinho canhota (nunca soube bem distinguir a direita da esquerda), aluguei um quarto no Eixample direito. O primeiro fim de semana nesse apartamento, sem ninguém com quem sair à noite e cheia de dores musculares, senti-me miserável. Pensei que era do colchão, então fui para o sofá da sala e acabei por adormecer. Quando o dono da casa acordou na manhã seguinte, soltou um ‘Déu n'hi do’ exasperado.
Na segunda semana, um email da R a convidar-nos para jantar, a nós, os outros Cs em Barcelona. A mim não me tinha ocorrido contactá-los. Nas aulas de catalão da generalitat, uma miúda com uma camisola às riscas vermelha e preta igual à que o Cobain usava veio falar comigo. Depois da aula fomos sair, com o namorado espanhol que eu pensei que era checo, e o amigo galego, e o irmão francês. Não houve mais nenhum fim de semana solitário, mesmo os que eventualmente terei passado sozinha. Barcelona é uma festa, Barcelona não se acaba nunca. Nenhuma literatura pode explicar o que é ter vinte e tal anos numa cidade europeia.
Não voltei a viver em Portugal. De Barcelona fui para Atenas, de Atenas para a Holanda, da Holanda para os Estados Unidos, dos Estados Unidos para França, e de França de volta aos Estados Unidos. Nalgum ponto do caminho, a fuga transformou-se simplesmente em caminho. T e eu temos duas filhas. Vivemos entre três países, as miúdas falam quatro línguas. O centro geodésico da nossa vida cai algures no meio do Atlântico. Ainda hoje, no fundo, penso que vou voltar. Não tenho intenção de voltar, mas mesmo ao fim de 20 anos, o cérebro insiste que viver fora é um estado temporário, como um eletrão excitado, longe do núcleo.
Às vezes tento imaginar o que estaria a fazer se tivesse voltado ou nunca tivesse saído. Destes dois cenários, nunca ter saído parece-me de longe o mais triste. Por ser tão fácil de imaginar. No início deste ano, uma universidade americana ofereceu-me uma bolsa para estudar e ensinar escrita criativa durante os próximos 3 anos. A mim, com esta idade vetusta e sem ser nativa em inglês. Imagino-me a segredar isso aos ouvidos da miúda a caminho da rua do século. Ela velha, e eu
nova, apesar das aparências.
Nos próximos três anos, vão possivelmente ensinar-me a não levar as metáforas demasiado longe. Mas aqui não resisto. Os eletrões de valência são os que formam as ligações aos outros átomos. Mas precisam de energia. O contacto é esse quantum exato de luz, fotão, energia de excitação que torna tudo possível.